Coronavírus: o que significa o alerta da OMS sobre transmissão aérea da covid-19?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu na última terça-feira (7/7) que existe a possibilidade de o coronavírus ser transmitido não apenas por gotículas expelidas por tosse e espirros, mas por partículas microscópicas liberadas por meio da respiração e da fala que ficam em suspensão no ar.
Benedetta Allegranzi, da Unidade Global de Prevenção de Infecções da OMS, afirmou em uma coletiva de imprensa realizada em Genebra, na Suíça, que há estudos que apresentam evidências disso, mas que elas ainda “não são definitivas”.
Segundo Allegranzi, a possibilidade de transmissão aérea do Sars-CoV-2 “é vista especialmente em condições muito específicas, como lugares com muitas pessoas e pouca ventilação”.
Em uma carta aberta publicada no dia anterior, um grupo de 239 cientistas de 32 países havia pedido que a chamada “transmissão por aerossol” fosse reconhecida por autoridades em saúde.
“A maioria das organizações de saúde pública, incluindo Organização Mundial da Saúde, não reconhecem a transmissão pelo ar, exceto para procedimentos geradores de aerossóis realizados em estabelecimentos de saúde”, disseram os pesquisadores.
Segundo eles, estudos vêm demonstrando “além de qualquer dúvida razoável” que o coronavírus está presente não apenas nas gotículas, mas também nestas micropartículas e que isso representa um risco potencial de uma pessoa ser infectada ao aspirá-las.
Isso pode ocorrer, dizem os cientistas, mesmo quando são seguidas as regras de higiene, como lavar frequentemente as mãos, ou de distanciamento social, ao se manter o afastamento mínimo de 1 ou 2 metros de outra pessoa.
Os cientistas reconhecem que as evidências deste tipo de transmissão são “incompletas”, mas ressaltam que também são incompletas as evidências sobre outras formas de transmissão, como por meio de gotículas ou ao entrar em contato com objetos e superfícies contaminados.
O infectologista Estevão Portela, vice-diretor de serviços clínicos do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, diz à BBC News Brasil que essas evidências ainda não permitem afirmar com 100% de certeza que a transmissão por aerossol ocorre, mas ele diz que isso indica, neste momento, que o melhor é tomar as medidas necessárias para prevenir esse tipo de contágio.
“Ainda há uma margem de dúvida, mas, neste momento, essa dúvida deve ser usada em favor da prevenção”, afirma Portela.
Onde é mais perigoso?
Portela aponta que há relatos de pequenos surtos em que “dificilmente há outra possibilidade de contágio que não seja o aerossol”.
Ele cita, por exemplo, o caso de um jantar em 24 de janeiro em um restaurante na cidade portuária de Guangzhou, na China, quando dez pessoas se infectaram a partir de um único indivíduo que já tinha o vírus.
Essas pessoas estavam distribuídas em três mesas, e estudos realizados por autoridades chinesas concluíram que os diferentes grupos não tiveram contato entre si ou com superfícies contaminadas.
O paciente já contaminado teria liberado o vírus em micropartículas no ar por meio da respiração e da fala. Essas micropartículas teriam se espalhado pelo ambiente por causa do sistema de ar-condicionado do local, de acordo com as pesquisas.
O médico Abraar Karan, pesquisador em saúde pública da Escola de Medicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, explicou à BBC que situações como essa podem ser consideradas “eventos superpropagadores” do coronavírus, assim como outras reuniões em locais fechados e com ventilação inadequada.
Em casos assim, o número de contágios é desproporcionalmente maior em comparação com os padrões de transmissão geral na população.
Estima-se que, em condições normais, uma pessoa com o coronavírus possa infectar outras três, em média. Mas, em ambientes fechados, lotados e nos quais as pessoas não estejam usando equipamentos de proteção individual, como máscaras, “uma pessoa pode infectar 10, 15 ou 20 pessoas”, disse Karan.
De acordo com o médico, os primeiros resultados de pesquisas sobre o tema indicam que a disseminação do coronavírus é causada principalmente por esses eventos superpropagadores. “Diferentes modelos analisaram o assunto e até agora sugerem que 20% das pessoas representam 80% da propagação.”
Qual é o risco?
Um estudo publicado em maio estima que uma pessoa infectada com o Sars-CoV-2 pode liberar em um minuto de fala mil micropartículas no ar. Seus autores concluem que “existe uma probabilidade substancial de que a fala normal cause transmissão de vírus em ambientes fechados”.
Outra pesquisa, que ainda não foi revisada por outros cientistas (um estágio que atesta a confiabilidade dos seus resultados), aponta que pessoas infectadas exalam de 1 mil a 100 mil cópias por minuto do genoma do coronavírus. Como os voluntários do estudo estavam simplesmente respirando, é provável que o vírus seja transportado por aerossóis e não por gotículas.
A título de comparação, um estudo aponta que uma tossida pode gerar cerca de 3 mil gotículas com um vírus, assim como uma fala de 5 minutos, e um espirro pode liberar até 40 mil gotículas.
Mas as gotículas são pesadas e caem no chão geralmente depois de percorrem cerca de dois metros. Já as micropartículas são menores e mais leves. Por isso, podem ficar suspensas no ambiente e percorrer distâncias maiores ao serem levadas pelas correntes de ar.
Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, explica que, em ambientes sem uma boa ventilação, as micropartículas com o coronavírus podem ficar suspensas no ar por até 2h30 antes de se degradarem ou se depositarem em alguma superfície.
Mas o virologista ressalta que não basta o vírus estar presente no ar para que haja o risco de alguém ser contaminado. Isso também depende da quantidade de vírus que existe ali. E, quanto mais amplo for o ambiente, menor seria a chance, porque essas partículas podem se dispersar pelo local.
“É preciso ter uma quantidade suficiente de partículas concentradas para haver uma infecção. Ao mesmo tempo, é necessário que várias partículas virais atuem sobre uma mesma célula para conseguir infectá-la. E tem que haver a infecção de várias células diferentes para que o contágio do organismo de fato ocorra, porque, se apenas algumas células forem infectadas, a resposta imunológica do corpo pode ser suficiente para combater isso”, diz Spilki.
Benjamin Cowling, da Escola de Saúde Pública da Universidade de Hong Kong, foi um dos cientistas que assinou a carta publicada na última segunda-feira. O epidemiologista afirma que, se esse tipo de transmissão de fato acontece, é preciso haver uma exposição prolongada às micropartículas.
“Então, entrar em uma loja pode não ser muito arriscado. Talvez seja necessário pensar em como proteger os funcionários dessa loja. Não vimos muitas transmissões em lojas, mas vimos em bares, restaurantes, onde as pessoas ficam por mais tempo e onde há mais pessoas reunidas. Se a ventilação não for boa, o risco é maior, e é nisso que precisamos prestar atenção”, disse Cowling à BBC.
Ele diz que o risco de contágio não é significativo em espaços abertos e faz uma comparação para explicar por quê: “Ao ar livre, você não sabe se alguém está fumando ao seu redor. É só quando você está em um lugar mal ventilado que isso incomoda. A mesma lógica pode ser aplicada aqui”.
O que fazer para se proteger?
A OMS afirmou que publicará nas próximas semanas um relatório com todas as informações à disposição sobre este assunto e que, por enquanto, não emitirá novas recomendações para evitar o contágio.
De acordo com a organização, as medidas anunciadas anteriormente estão mantidas. Isso significa evitar reuniões em locais fechados, a participação em eventos com muitas pessoas e manter os ambientes bem ventilados.
“Nos lugares onde houve pequenos surtos, não se infectaram as pessoas que ficaram por pouco tempo em um restaurante ou que só tiveram contato com quem tinha o vírus ao pegar o mesmo elevador. Então, o ideal é não passar muito tempo, meia hora ou mais, em um local fechado”, diz Estevão Portela.
O infectologista avalia que uma das repercussões no cotidiano diz respeito ao uso do transporte público, onde muitas vezes as pessoas permanecem em ambientes com pouca circulação de ar por longos períodos.
“Uma coisa que terá que ser avaliada, diante dessa possibilidade, é que as empresas tenham horários flexíveis, para que os funcionários não usem o transporte público no horário de pico, deem prioridade ao retorno ao escritório para quem mora perto ou não usa esse meio de transporte ou mantenham o home office.”
A OMS também reforçou a importância de manter o distanciamento social, que impede que as gotículas caiam sobre outra pessoa, assim como o uso de máscaras serve como uma barreira física para elas que sequer sejam lançadas no ar.
Fernando Spilki explica, no entanto, que as máscaras de pano e cirúrgicas provavelmente não impedem que as micropartículas sejam aspiradas, porque o vírus é muito menor do que os poros dos tecidos usados nelas.
Além disso, esse tipo de máscara não veda completamente a boca e o nariz. Então, as micropartículas ainda poderiam passar pelas frestas entre o tecido e a pele.
“Teoricamente, essas máscaras não conseguem reter o aerossol, mas a gente considera que muitos vírus podem ficar presos nelas. Além disso, elas conseguem reter as gotículas”, diz o virologista.
Portela ressalta ainda que as máscaras têm um papel importante para evitar que uma pessoa que está infectada e ainda não sabe (porque ainda não tem sintomas) passe o vírus para outras pessoas.
“Mesmo antes de ter sintomas, a pessoa já pode estar espalhando o vírus. Mais do que uma proteção individual, a máscara é importante para proteger os outros.”
Existe um tipo de máscara que é capaz de prevenir a transmissão aérea do vírus. Conhecida como N95, ela é feita com um material com uma porosidade menor, que retém a maioria das partículas, além de vedar o nariz e a boca.
Mas Portela e Spilki explicam que elas não devem ser usadas pela população em geral e, sim, por profissionais de saúde que circulam em ambientes onde as micropartículas estão presentes em grande quantidade.
“As pessoas não devem sair correndo para comprar uma N95 porque o que existe disponível no mercado deve ser reservado a essas pessoas que trabalham em locais onde o risco de contágio é maior, como hospitais e lares de idosos”, diz Spilki.
Portela explica que, com esse modelo de máscara, a respiração fica mais desconfortável do que com os tipos comuns. “A pessoa pode acabar mexendo na máscara e colocando a mão no rosto o tempo todo e, com isso, as gotículas que estavam na máscara podem passar para a mão. A pessoa depois coça o olho e se contamina.”
Por que a OMS reconheceu que existe este risco?
Esta não é a primeira vez que a OMS muda de posição ou sinaliza que pode fazer isso em respeito ao que se sabe sobre o coronavírus.
No início da pandemia, a organização não recomendava o uso amplo de máscaras e as indicava só para quem estivesse doente ou para quem cuida destas pessoas.
No entanto, a OMS passou depois a indicar seu uso por todos e se justificou dizendo que novas informações apontavam que elas poderiam ser uma barreira importante para as gotículas expelidas pela tosse e por espirros.
A organização também se viu em meio uma polêmica quando uma de suas especialistas disse que a transmissão da doença por pessoas assintomáticas é “muito rara”.
Isso gerou espanto entre especialistas, por contrariar a noção prevalente até então de que os assintomáticos tinham um papel relevante na propagação do coronavírus.
Com a controvérsia instaurada, a OMS veio a público para esclarecer que, ao afirmar que esse de transmissão é rara, quis dizer que ainda não se sabe qual a proporção exata dos contágios que se dá desta forma. Há evidências que sugerem que pessoas sintomáticas são mais infecciosas, mas a doença pode ser transmitida antes de os sintomas começarem a desenvolver.
Estevão Portela diz que, desta vez, a OMS tem demonstrado certa resistência em reconhecer a transmissão área do coronavírus e que a organização reagiu em resposta ao debate crescente em torno dessa possibilidade, o que gerou uma pressão sobre ela.
“A OMS sempre foi um pouco conservadora e, como neste caso não há uma prova inequívoca, preferiu se resguardar. Acredito que ela também tem sido refratária por causa da preocupação que isso pode causar e o custo envolvido para prevenir esse tipo de transmissão, sem que isso tenha necessariamente um impacto significativo na propagação do vírus”, afirma o infectologista.
Fernando Spilki diz que o principal papel da OMS é gerenciar uma crise como uma pandemia e que a organização precisa levar em conta a capacidade financeira e logística dos seus países-membros em implementar determinadas medidas.
“O mesmo ocorreu com as máscaras. No início da pandemia, vendo a dificuldade dos países em conseguir máscaras para todo mundo, a recomendação da OMS buscava reservar esses equipamentos para proteger quem pode estar mais exposto”, diz o virologista.
Benjamin Cowling destaca que, se a transmissão por aerossol for uma realidade, isso significa que os profissionais de saúde devem usar os melhores equipamentos de proteção disponível, inclusive máscaras N95.
“Um dos motivos pelos quais a OMS disse que não estava disposta a falar sobre a transmissão aérea é que não há máscaras N95 suficientes em muitas partes do mundo e não seria possível recomendar seu uso mais amplo. Em termos comunitários, teríamos que pensar também em como evitar os eventos superpropagadores”, diz o epidemiologista.
“Mas, cientificamente, se existe esse risco, temos que falar sobre isso e pensar formas de evitar que isso aconteça.”
Rafael Barifouse da BBC News Brasil em São Paulo