Aposta na ‘imunidade de rebanho’ coloca quase 2 milhões de vidas em risco
Na falta de consenso sobre taxa de infecção para se chegar à chamada imunidade de rebanho, distaciamento social precisa ser mantido, alertam pesquisadores
A estimativa de que 60% das pessoas que tenham sido infectadas pelo novo coronavírus e foram curadas da covid-19 representaria a chamada “imunidade de rebanho”, implica diretamente na morte de mais 1 a 2 milhões de pessoas no Brasil. É o que calculam pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), em artigo publicado no Jornal da USP, nesta quinta-feira (6).
A publicação é assinada pela pós-doutora Caroline Dutra Lacerda e o professor emérito do IQ-USP Hernan Chaimovich. De acordo com os cientistas, diante da taxa de mortalidade da covid-19, que em seu melhor cenário varia de 1% a 2%, e considerando a população brasileira de 210 milhões de habitantes, apostar na imunidade coletiva levaria o país a um cenário ainda mais “assustador e trágico”.
Essa suposta resistência coletiva ao vírus ocorre quando uma parcela suficientemente grande de indivíduos na população adquire imunidade à infecção a ponto de que ela não encontre outras pessoas suscetíveis à doença. E assim, o percentual dos que ainda não teriam imunidade também estaria protegido.
Isso ocorreria não porque o vírus passaria a ter uma infectividade menor. Mas sim pela diminuição da probabilidade de uma pessoa sem imunidade entrar em contato com outra, infectada. Os pesquisadores explicam que essa dinâmica parte de cálculos aritméticos. Eles estimam que para frear a propagação do Sars-CoV-2 (nome dado ao novo coronavírus), ao menos 60% da população precisa ficar imune após a infecção.
Consenso é pelo distanciamento social
Ao programa Coronavírus em Xeque, da Rádio Paulo Freire, emissora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o professor Leandro Tessler, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (IFGW-Unicamp), ressaltou que há ainda outros modelos que calculam a taxa de infecção da população pela covid-19. A revista Science chegou a publicar, por exemplo, que a imunidade de rebanho se daria ao contaminar 43% das pessoas. A estimativa valeria para uma população heterogênea, com diferentes graus de isolamento e distanciamento social. Em maio, um outro modelo matemático chegou a reduzir esse percentual de imunidade coletiva para entre 10% a 20%.
Tessler diz que não há consenso científico sobre o tema. E que os modelos também apresentam erros, além de serem limitados. “Os modelos úteis indicam que a imunidade de rebanho não ocorrerá com apenas 20% da população imune. As medidas de distanciamento físico precisam ser mantidas para evitarmos uma tragédia maior”, garantiu o professor.
Os pesquisadores do IQ-USP concordam. No artigo, eles destacam que, sem a vacina e sem as medidas de distanciamento social para proteção, quatro pessoas infectadas contaminam outras 10, que por sua vez transmitem o vírus para mais 25 pessoas, e assim por diante.
Com o isolamento, ou com pelo menos 50% da população imunizada por uma vacina, a taxa de infecção cai. Seriam preciso quatro pessoas com a covid-19 para passar o vírus para outras cinco, que contagiariam apenas outras seis.
Ainda de acordo com os cientistas do Instituto de Química, se metade da população estivesse vacinada e precisasse de 20% de infectados curados, o número de mortes esperado seria entre 210 e 420 mil mortos.
Eles observam que “esses números assustadores e trágicos somente podem diminuir por uma ação política que implemente proteção individual e distanciamento social até que uma cobertura vacinal de, pelo menos, 60% da população, garanta um efeito manada com um mínimo de mortes adicionais”, explicam.
Imunidade não é política
Ao Jornal Brasil Atual, o médico infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Evaldo Stanislau Affonso de Araújo já havia alertado que para chegar no percentual de 60% de contaminados curados, “o custo de vidas e em saúde seria inaceitável do ponto de vista ético”.
Oficialmente o presidente Jair Bolsonaro não assume que tenha adotado a imunidade de rebanho como “política” para conter a pandemia. Mas sempre se mostra crítico às medidas de distanciamento social e defensor da reabertura do comércio. Bolsonaro ainda repete que “em algum momento todos serão contaminados”. Ou “pelo menos 70% da população”, ainda que os infectologistas destaquem que esse “não é um raciocínio normal. É muito mais próximo ao de um genocídio”, como descreveu Stanislau.
A queda de casos da covid-19 no Amazonas vem sendo usada para reforçar a teoria da “imunidade de rebanho”. Ao site El País, no entanto, o biólogo Fernando Reinach observa que, “sem testes para confirmar o número real de pessoas infectadas no Brasil, tudo não passa de hipótese”, garantiu. O pesquisador se referia ao estado de São Paulo, onde o número de infectados pode ser até 10 vezes maior do que o número oficial de casos. De toda forma, para os cientistas, a imunidade de rebanho não deve ser uma “política pública” contra o novo coronavírus. (RBA)