Vacina Covid-19 paga: priorizar rede privada é imoral
Vacinação não é questão individual. Para ser eficiente, deve ser estratégica e coletiva. Vacina paga, para poucos, é um risco para a humanidade
O Brasil está com um grande atraso para apresentar um plano de imunização contra a covid-19. A condução da Saúde no governo do presidente Jair Bolsonaro é desastrosa. E sem programa e perspectivas estruturadas para uma vacinação estratégica da população, a rede privada de saúde passou a flertar com uma possível oferta de vacina paga pelo paciente, fora do Programa Nacional de Imunização do SUS. Mas as críticas são muitas: desde questões sociais a até científicas.
Um conjunto de entidades ligadas à saúde divulgou um manifesto intitulado “Vacinar no SUS é um direito de todas e todos e um dever do Estado”. No documento, órgãos como o Conselho Nacional de Saúde, Sociedade Brasileira de Bioética e Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, entre outros, listam os problemas de uma distribuição de vacina contra covid-19 paga por usuários da rede privada. “As consequências nefastas da venda de vacinas contra a Covid-19 por clínicas privadas vão além do aprofundamento do abismo social brasileiro.” A polêmica começou no domingo (3), quando a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) anunciou que representantes de clínicas privadas viajariam à Índia para negociar a compra de 5 milhões de doses do imunizante Covaxin, do laboratório local Bharat Biotech. O imunizante teve seu uso aprovado emergencialmente pelo governo indiano, mas ainda não apresentou os resultados da Fase 3.
Mais de 50 países já iniciaram o processo de vacinação no mundo. Enquanto isso, o Brasil caminha lentamente. Ao contrário, Bolsonaro segue com sua postura de atacar vacinas. No Reino Unido, por exemplo, a vacinação já teve início com dois imunizantes. Além disso, intensificaram medidas de isolamento social durante o processo. Lá, para evitar desigualdade no acesso à vacina, governo e empresa elaboraram acordos para impedir o fornecimento para a rede privada, enquanto a maior parte da população não tenha sido vacinada pelo sistema público.
Questão social
Para as entidades signatárias do manifesto, a oferta de uma vacina antes para quem paga é algo imoral. E ainda pode ser ineficaz. A possibilidade também foi alvo de críticas de lideranças políticas e muitos médicos e cientistas. “Numa sociedade como a nossa, marcada por grotescas desigualdades sociais, é moralmente inaceitável que a capacidade de pagar seja critério para acesso preferencial à vacinação contra a Covid-19. Caso isso ocorra, uma fila com base em riscos de se infectar, adoecer e morrer será desmontada. É inadmissível, portanto, permitir que pessoas com dinheiro pulem a fila de vacinação por meio da compra de vacinas em clínicas privadas”, afirma o documento.
Questão científica
Outra questão que assusta em um cenário de ofertas de vacina a ser paga pelo paciente, uma elite da população, é a eficácia. Vacinação efetiva tem como objetivo uma imunização de rebanho saudável com preservação de vidas. É uma questão estratégica coletiva e não individual, como explica a epidemiologista PhD Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
“Se você comprar, se vacinar e todo seu entorno não vacinar, o vírus pode fazer uma mutação e sua vacina não servir para nada (…) Vacina não é remédio. Vacinação é estratégia coletiva. Dinheiro jogado fora. Sabe por que a OMS trabalha para que todos os países se vacinem? Porque se alguém, em algum lugar, ficar sem vacinação e o vírus fizer uma mudança em sua estrutura, todo o esforço será perdido”, alertou.
Logo, existem riscos sanitários que envolvem uma vacinação seletiva apenas para os mais ricos. “Repetindo para que todos entendam: Vacina é estratégia coletiva. Precisamos do maior número, em todos os lugares vacinados. Imunidade coletiva. Nossa briga deve ser acesso universal às vacinas e não ‘eu tenho dinheiro e posso pagar para me salvar’. Ninguém se salva sozinho se não salvar a todos. Essa é a lição do vírus, ou entendemos, ou afundamos juntos”, completa a cientista. (RBA)