Dez anos depois, governos têm menos fôlego contra crises financeiras

Se algo mudou de 2008 para cá foi a despreocupação dos financistas: estão certos que os governos nunca se atreverão a deixar um banco falir. Mas querer não é poder.

 

Os protestos do Occupy foram reprimidos e a ira deflagrada pela crise reorientada contra imigrantes e outros bodes expiatórios

por Antonio Luiz M. C. Costa

Em 15 de setembro completaram-se dez anos de um evento mais determinante para nossos tempos do que o 11 de setembro de 2001: a falência do banco Lehman Brothers, marco do início da crise financeira e econômica de 2008.

Se as consequências do atentado da Al-Qaeda ainda ressoam sobre o Oriente Médio, aquelas do colapso do mercado de derivativos de hipotecas subprime afetam não apenas 200 milhões de desempregados oficiais do mundo, mas praticamente cada pessoa, cada decisão política e cada eleição do planeta.

Some-se a isso que, embora pouco ou nada se tenha feito para enfrentar as raízes do terrorismo, foram adotadas em quase todos os países medidas de segurança e vigilância que tornam muito difícil cometer hoje, ao menos com métodos semelhantes, um atentado comparável àquele que atingiu as Torres Gêmeas e o Pentágono.

Nada comparável foi feito para evitar a repetição de uma crise financeira de proporções mundiais. Os bancos foram salvos de sua própria incompetência com dinheiro público, a maioria dos responsáveis não foram punidos, as promessas de reduzir a concentração do setor foram esquecidas e as poucas medidas de controle e regulamentação adotadas na época têm sido revogadas.

Se algo mudou, foi no sentido de reforçar a despreocupação dos financistas. Estão certos de que os governos, depois das consequências da falência do Lehman, nunca mais se atreverão a deixar falir um grande banco. Entretanto, querer não é poder.

Os governos atingidos ainda arcam com o aumento da dívida à qual se obrigaram para resgatar o sistema financeiro e com a compressão de gastos pela “austeridade” imposta a desempregados, minorias e necessitados para garantir os lucros e dividendos dos acionistas dessas corporações.

Se ou quando houver uma nova grande crise internacional, haverá menos gastos a serem cortados e menos espaço para aumento das dívidas públicas. Também haverá menos disposição dos governos a cooperarem para contê-la.

Em 2008, havia no Ocidente pouca contestação à globalização neoliberal, o que, se, por um lado, criou condições para a crise ao esvaziar a supervisão de bancos e facilitar a circulação de fluxos financeiros, também criou um consenso entre os governos sobre o caminho a seguir.

As elites da América do Norte, Europa e Ásia sabiam estar no mesmo barco e precisar agir em conjunto para evitar seu naufrágio – às custas da plebe, naturalmente. Dez anos depois, principalmente por causa das consequências desse resgate sobre o eleitor comum, os egoísmos nacionais e os movimentos isolacionistas estão em alta e as organizações multilaterais desmoralizadas.

Comércio e finanças internacionalizados, talvez mais que há dez anos, combinados com um sistema político cada vez mais fragmentado é uma combinação incendiária, principalmente neste momento.

Os esforços para estimular a economia e minimizar as consequências da crise resultaram em quase dez anos de juros básicos reais negativos e oferta ilimitada de dinheiro pelos bancos centrais dos países ricos.

Em consequência da fraqueza da demanda – consumidores desempregados ou com temor do desemprego relutaram em se endividar, mesmo com juros baixos – e da escassez de inovações tecnológicas capazes de atrair grandes investimentos, boa parte do dinheiro, talvez a maior, foi desperdiçada em especulação improdutiva, da qual o sintoma mais agudo foi a febre da Bitcoin e outras criptomoedas, que atingiu seu pico no final de 2017.

Entretanto, essa conjuntura sem precedentes na história do capitalismo não poderia durar indefinidamente sem pôr em questão os próprios pressupostos do sistema.

No ano passado, considerando não haver mais risco de recessão nos EUA, o Fed começou de novo a aumentar a taxa, de 2% desde junho de 2018.

Embora ainda não supere a inflação do dólar – 2,7% nos 12 meses até agosto, 2,4% esperados para os próximos 12 –, bastou para atrair de volta aos EUA capitais especulativos espalhados pelo mundo e pôr em apuros quem aproveitou a era dos juros negativos para tomar empréstimos.

O primeiro canário na mina, como dizem os economistas (alusão ao costume de mineiros de carvão de ter gaiolas nos túneis para que a morte desses pássaros, muito sensíveis a gases tóxicos, servisse de alarme), foi a Argentina, incapaz de resistir à fuga desses recursos e rolar sua dívida com juros em alta.

O dólar subiu de menos de 15 pesos no início de 2017 para 40 hoje. Buenos Aires recorreu ao FMI, mas há dúvidas sobre se o empréstimo de emergência em discussão basta para dar conta dos pagamentos previstos até o final do ano, quanto mais para 2019. A relação entre a dívida pública e o PIB, que era de 46% no fim do governo de Cristina Kirchner, deve chegar a 111% em dezembro.

Outro possível canário é a Turquia. Enquanto Mauricio Macri conta em tese com a simpatia do governo de Donald Trump e dos economistas ortodoxos por seu rigor neoliberal e alinhamento incondicional com os Estados Unidos, Recep Tayyip Erdogan é aluno rebelde de economia e geopolítica, às turras com Washington e Bruxelas, e um teste da fragmentação do Ocidente, ao qual ainda se supõe pertencer como integrante da Otan.

Até agora, apesar do envolvimento militar na Síria, Ancara resistiu melhor que Buenos Aires, mas pode desencadear uma crise financeira mais grave, dado o comprometimento de bancos europeus com investimentos nesse país, principalmente o espanhol BBVA (também envolvido na Argentina e outros países latino-americanos), seguido pelo italiano Unicredit, de um país cujos sistemas financeiro e político foram especialmente fragilizados pela crise.

Os mercados imobiliários também são armadilhas em potencial. Em Londres, os preços estratosféricos dos imóveis podem cair bruscamente com a perda do status de capital financeira da Europa após o Brexit de março de 2019, salvo um acordo cada vez mais improvável.

Nos EUA, sustentar a recuperação dos preços dos últimos anos parece cada vez mais difícil: os jovens, com dificuldade crescente de pagar as prestações do crédito educativo, não estão em condições de comprar casas próprias e aqueles que conseguiram comprá-las com financiamento imobiliário na era dos juros negativos não querem vendê-las para comprar outras maiores porque isso implica assumir novas dívidas, com juros bem mais altos.

Riscos maiores em dimensão são, porém, aqueles dos investimentos em cadeias de produção ameaçadas pelas guerras comerciais recém-deflagradas.

O risco de dissolução total do Nafta e paralisação de um fluxo comercial de 314 bilhões anuais do México para os EUA e 243 bilhões no sentido contrário foi aparentemente contornado por um acordo que, grosso modo, garante o uso de um porcentual de mão de obra estadunidense sem desmantelar as fábricas instaladas no México, à custa da importação de componentes europeus e asiáticos.

Isso força transnacionais a repensarem suas linhas de produção, e deve encarecer um pouco o produto final, mas não é o fim do mundo. O maior problema é que obter um acordo à custa de ameaças e arrogância encorajou Trump a tentar dobrar a China com a mesma estratégia.

Na segunda-feira 17, a Casa Branca anunciou tarifas de 10%, a serem aumentadas para 25% em janeiro, sobre 200 bilhões anuais de importações de produtos chineses. Somados aos 50 bilhões anteriormente tarifados, isso significa quase a metade dos 505 bilhões de vendas da China aos EUA – e Trump ameaçou tarifar também o restante se Pequim retaliasse.

Xi Jinping fez exatamente isso, tarifando 60 bilhões além dos 50 bilhões de importações de produtos dos EUA anteriormente afetados, ou que representa 85% dos 130 bilhões de 2017.

O governo republicano tem, nesse caso, mais apoio interno. A linha dominante dos democratas defende o Nafta, visto como uma das realizações de Bill Clinton, mas se alinha com as queixas das transnacionais dos EUA sobre concorrência desleal e roubo de propriedade intelectual pelos chineses – e democratas de esquerda como Bernie Sanders, se são menos simpáticos ao Nafta, são ainda mais hostis ao comércio com a China.

Há hoje consenso nos EUA de que a China é a principal ameaça à sua hegemonia e precisa ser enquadrada. Como no século XIX, trata-se de forçar a abertura de seus portos e desarmar sua estratégia protecionista, a mesma que fez dos EUA, da Alemanha e do Japão países ricos e poderosos.

Por outro lado, a China não está disposta a ceder – e mesmo se lhe faltam mais importações dos EUA a tarifar, tem outras maneiras de retaliar, incluindo despejar no mercado trilhões em títulos do Tesouro em suas mãos, sabotar a diplomacia e estratégia internacional de Washington e cortar o fornecimento de insumos cruciais para empresas dos EUA.

Para Pequim, não é uma questão de toma-lá-dá-cá, mas de preservar o desenvolvimento, o prestígio internacional e o próprio regime, ameaçado tanto pela pressão popular por melhores salários e condições de trabalho quanto pelo crescente endividamento interno, parte desconhecida do qual referente a créditos podres de bancos a projetos industriais e de infraestrutura malsucedidos ou golpeados pela crise internacional.

confronto pode durar anos e desorganizar o comércio internacional de forma muito mais extensa do que qualquer outra disputa imaginável – exatamente o contrário do que aconteceu em 2008, quando estava na moda o conceito de “Chimérica” (simbiose entre China e EUA), Pequim amenizava os riscos para o sistema financeiro comprando títulos e seu crescimento reduzia ou adiava o impacto da crise sobre os exportadores de matérias-primas.

Uma crise hoje é tão provável quanto há dez anos e mais perigosa, porque é muito provável que, desta vez, as grandes nações disparem entre si em vez de buscar uma saída comum.

 

* Antonio Luiz M. C. Costa é editor de Internacional de CartaCapital

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