Questão de gênero: indicadores de saúde mental são piores para as meninas
Elas têm se sentido mais tristes, a maior parte do tempo, do que os meninos. E também mais preocupadas, ou sentindo que ninguém se preocupa com elas, ou ainda que a vida não vale a pena ser vivida. As informações da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), divulgada hoje (10) pelo IBGE, retratam um cenário preocupante quanto à saúde mental dos 11,8 milhões de estudantes de 13 a 17 anos entrevistados em 2019. Especialmente, no que se refere às meninas, que representaram 50,7% desse total.
As perguntas sobre saúde mental buscaram captar como os adolescentes se sentiam nos 30 dias anteriores à pesquisa. Com exceção da pergunta sobre ter amigos próximos, em que ambos os sexos tiveram baixo percentual de respostas negativas (elas, 3,8% e eles, 4,2%), todos os indicadores foram piores para o sexo feminino. O sentimento de que a vida não vale a pena ser vivida, por exemplo, atingia 29,6% das adolescentes, mais do que o dobro dos 13% dos meninos. E, a partir da combinação da resposta a cinco perguntas, a PeNSE mostrou que o indicador de autopercepção de saúde mental negativa foi bem maior entre as meninas: 27% delas contra 8% deles, ou seja, o indicador para mulheres foi mais de três vezes pior.
A analista do tema na pesquisa, Thaís Mothé, comenta que a literatura já vem alertando para esse fenômeno. “É um padrão internacional em pesquisas de saúde mental, tanto para a população em geral, quanto para adolescentes, como é o caso da PeNSE”, esclarece. “Entretanto, além da lamentável desigualdade de gênero, chama atenção a própria magnitude para o grupo das mulheres. São valores muito elevados para esses resultados de saúde mental”.
Um retrato dos adolescentes no período pré-pandemia
A PeNSE, realizada ao longo de 2019, é um retrato da saúde de uma população vivendo uma fase crucial de suas vidas: a adolescência. O que os pesquisadores não contavam é que conseguiriam tirar esse retrato justamente no período pré-pandemia. “De uma forma geral, a literatura em saúde mental vai indicar que isolamento, medo, preocupação intensa, estresse, são fatores de risco em saúde mental. Na pandemia temos tudo isso de forma bem intensa”, confirma Thaís. “Para o grupo dos adolescentes, o isolamento social parece ser mais preocupante porque é a fase em que ocorre um processo de afastamento dos familiares, em prol de uma aproximação com os pares, em termos de idade. A vivência do isolamento parece caminhar no sentido oposto”.
A OMS já aponta, como efeitos da pandemia, maior exposição a perigos como violência doméstica e abuso infantil, diminuição das atividades físicas e aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, cigarro, álcool e outras drogas. Nesse sentido, os dados de saúde mental dialogam com uma série de dados captados pela PeNSE: insatisfação com o próprio corpo, bullying, autoagressão e histórico de violências física, sexual ou psicológica, por exemplo, o que ajuda a delinear o cenário de exposição ou proteção dos estudantes a riscos à saúde, com especial atenção aos resultados para as meninas.
“Existem relações muito intrincadas entre imagem corporal, violências e saúde mental. A questão de gênero está muito colocada”, diz Alessandra Pinto, analista da PeNSE. Ela se remete à ditadura do corpo ideal, em que nem os brinquedos ficam de fora. “Existe um padrão corporal e a menina é exposta a isso. Existem estudos na área de psicologia que falam sobre brinquedos. Qual é a imagem que tem da boneca? Magérrima. Há um padrão muito bem definido”, ressalta.
O retrato da satisfação corporal entre os adolescentes da PeNSE parece, em geral, positivo: 66,5% dos estudantes se sentiam satisfeitos ou muito satisfeitos em relação ao próprio corpo, 49,8% consideravam seu peso normal e 42,4% declararam não tomar qualquer atitude de mudança. Porém, quando os dados são separados por sexo, lá vem a desvantagem feminina de novo. Os satisfeitos ou muito satisfeitos são 75,5% dos meninos (contra apenas 57,8% das meninas).
“Este gráfico mostrando fatores como o consumo de guloseimas é muito indicativo das questões de gênero. Ele dá pistas de que realmente existe um comportamento muito específico das meninas”, comenta Alessandra, destacando as atitudes para perder ou evitar ganhar peso, como o uso de laxantes e indução de vômito. “As mulheres usam mais esse expediente, é conhecido nos estudos que tratam desse tema. As meninas anoréxicas, a bulimia, a imagem das modelos, isso tem recorte para o sexo feminino. Entre os meninos, [a atitude de mudança] é mais para ganhar peso e massa muscular”.
Os relatos de bullying e de violência sexual também seguem mais frequentes entre as meninas do que entre os meninos. A PeNSE mostrou que 20,1% das meninas já sofreram violência sexual (meninos, 9%) e que 26,5% das meninas relataram ter sofrido bullying (eles, 19,5%). Aparência corporal foi declarada como motivo do bullying por 16,5% dos estudantes no Brasil.
“O que a gente pode dizer é que, pela literatura, é prevista uma associação forte entre saúde mental e bullying. Ele pode ser tanto um fator de risco quanto um sintoma de questões de saúde mental, por isso é complicado falar de causalidade. Mas há associação, sem dúvida. Não é por acaso que a gente vê a desigualdade de gênero tão presente nessas três áreas”, comenta Thaís.
Outra questão preocupante, que já chama atenção de pesquisadores dentro e fora do país, é o fenômeno da autolesão ou autoagressão. Para se ter uma ideia, dos 18,2% dos adolescentes que se envolveram em acidente ou agressão, 5,2% relataram autoagressão. Entre estes, em mais de 60% deles havia relação com características de depressão, ansiedade e dificuldades relacionais em casa e na escola. Mais uma vez, a população mais afetada é a do sexo feminino: 85% das adolescentes que declararam autolesão se sentiam tristes sempre ou na maioria das vezes (entre os meninos, 54,2%); 71,3% delas sentiam, sempre ou na maioria das vezes, que a vida não valia a pena ser vivida (eles, 50,5%) e 67% responderam ter sofrido bullying (os meninos, 62%).
“Os resultados da PeNSE dão uma pista. Aqui tem uma foto, com uma série de nuances, e é preciso se debruçar sobre esses dados”, analisa Alessandra. “Não dá para separar da questão sociológica, antropológica, psicológica e da violência. É uma colcha de retalhos”.
Fonte IBGE: Marilia Loschi – Art: Jessica Candido | Imagem: StockSnap Pixabay