Reformas do governo Bolsonaro não recuperam economia e retiram direitos, diz estudo
Sem uma reorientação do Estado, economia deve patinar em 2021; economista fala sobre possíveis caminhos para a retomada
“Em face da crise brasileira e sua resiliência, somente o Estado é capaz de levar adiante um conjunto de políticas anticíclicas que não apenas atuem sobre o nível de atividade econômica, senão que proteja os mais vulneráveis da dinâmica recessiva.” Esta é uma das conclusões do documento A economia brasileira na berlinda da crise da Covid-19: balanço e perspectivas para 2021, publicado nesta semana pelo Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE).
Elaborada pelos economistas Juliane Furno, Daniel Fogo, Lígia Toneto e Matias Rebello Cardomingo, a análise, mesmo sem a totalidade dos dados anuais referentes à economia brasileira, faz um balanço do cenário de 2020 e traz perspectivas para este ano. Que não são boas, caso o governo cumpra aquilo que tem estabelecido como agenda na área.
A pandemia chegou ao Brasil em um período no qual o país ainda se encontrava em uma situação de semiestagnação econômica, com uma recuperação lenta e insuficiente da crise de 2015-1016. A lógica da austeridade fiscal que norteou as políticas públicas no últimos anos não só foi incapaz de promover o crescimento e o equilíbrio fiscal, como aprofundou ainda mais as desigualdades sociais.
Agora, a aposta do governo Bolsonaro é nas chamadas reformas, que contam com apoio expressivo de parte da mídia tradicional. Um cronograma da votação já estaria acertado para a votação das principais propostas de interesse da equipe econômica, segundo declarou na quinta-feira (4) o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). “O governo está com tudo programado, já tem a receita de como combater os efeitos da pandemia. Mas estamos absolutamente sintonizados com o Ministério da Fazenda, com o governo federal, com a pauta das reformas”, disse.
“As reformas, que se tornaram um mantra, sozinhas têm muito pouca eficácia. Esse discurso que apela para a aprovação das reformas estruturais, dissociado de um plano de retomada do crescimento econômico que passe sobretudo pela política fiscal, é um passo para o fracasso. Inclusive empiricamente já pudemos comprovar como foram outras reformas, como a previdenciária, a trabalhista e a Lei do Teto de Gastos, que encarnaram por um certo tempo essa possibilidade de recolocar o Brasil no trilho do crescimento econômico e se mostraram fracassadas”, avalia a mestre e doutora em desenvolvimento econômico na Unicamp, também economista-chefe do IREE Juliane Furno à RBA.
E não é que o Brasil não precise reformar legislações referentes a diversos setores da economia. O problema é o tipo de proposta que o governo traz. “Obviamente a reforma tributária teria um componente mais propositivo, com uma ligação mais direta com a questão do crescimento econômico, mas não a reforma que está na Câmara e no Senado. Ao mesmo tempo em que ela tem que cumprir com aqueles requisitos de simplificação e unificação de tributos, acabar com litígios na Justiça e burocracia no recolhimento tributário, ela não vai garantir eficiência de fato e crescimento econômico se não for também redistributiva”, pontua Juliane.
Neste aspecto, uma reestruturação tributária que atacasse o caráter regressivo do sistema brasileiro, que tributa mais o consumo do que a renda e o patrimônio, poderia ser um estímulo para a economia. “Precisamos agora que as pessoas consumam, o consumo é um elemento importante do PIB. Se a renda das pessoas puder aumentar, se parte do que elas gastam em tributo indireto e mesmo direto, pela correção da alíquota do IR, ficar no bolso do trabalhador, abre-se a possibilidade para que ele consuma mais e isso pode dinamizar a economia. Além de cumprir com requisitos importantes para a justiça social, que é reformar a regressividade do sistema tributário.”
A questão do emprego no Brasil
O documento elaborado pelo IREE ressalta ainda que o país sofre com problemas estruturais típicos de economias subdesenvolvidas, o que traz desafios muito superiores aos dos países mais ricos. Um deles diz respeito ao mercado de trabalho. “Em 2017, pela primeira vez na história, o número de trabalho informais superou o de trabalhadores formais no mercado de trabalho brasileiro. Além disso, ingressamos na crise do coronavírus com um grande e resiliente contingente de trabalhadores desempregados e subutilizados”, diz o texto.
Mais uma vez trata-se de uma questão que já era grave antes da pandemia. “A taxa de desemprego se estabilizou em um patamar relativamente elevado desde de 2015, variando entre 11% e 13% de desocupação. Além do desemprego, avançavam a passos céleres, novas modalidades de trabalho desconectadas do regime celetista de trabalho, com impactos importantes na proteção social e na cobertura dos direitos trabalhistas e previdenciários”, destaca a análise.
O documento traz dados do IBGE mostrando que apenas 46,8% das pessoas estavam exercendo atividades remuneradas no 4º trimestre de 2020. E é preciso levar em conta que a taxa de desemprego, em meio à pandemia, se tornou um indicador que não dá conta de ilustrar as reais condições do mercado de trabalho, já que só aparece como desempregado nas estatísticas quem efetivamente procurou emprego na semana analisada.
“O problema do emprego vai ser a maior herança dessa pandemia e da forma pouco eficiente – fazendo um eufemismo – com que o governo Bolsonaro e a equipe econômica trataram a questão de salvar vidas e a economia. A crise do coronavírus atingiu principalmente o setor informal, que já tinha superado o número de trabalhadores formais no Brasil desde 2017, adicionando-se ainda os trabalhadores do setor privado sem carteira e os por conta própria que não tem CNPJ, categorias de emprego informal disfarçadas”, detalha Juliane. “Vai ser urgente constituir um plano emergencial de curto e médio prazo para recuperar os postos de emprego perdidos e preservar os que seguem na berlinda.”
A economista destaca a importância de se discutir um apoio eficaz a pequenas e médias empresas, a formulação de benefícios tributários e de créditos com contrapartida de não demissão de trabalhadores, além de um plano de médio e longo prazo e médio prazo que reestruture a economia brasileira e recoloque no rumo do crescimento, que é, fundamentalmente, o que pode gerar empregos.
Caminhos da retomada
O avanço da imunização contra a covid-19 pode fomentar as relações comerciais no cenário global e beneficiar o país do ponto de vista econômico. “Como possível facilitador da retomada, o comércio externo pode exercer influência positiva sobre o desempenho da economia brasileira em 2021. A vacinação em massa nas principais economias mundiais tem o potencial de criar espaço para uma aceleração da atividade global, podendo impulsionar a economia brasileira tanto pela possível retomada e intensificação dos fluxos de capitais e investimentos externo nos países emergentes, quanto pela expansão da demanda mundial”, diz o documento.
Mesmo com um cenário externo que pode se mostrar favorável, o governo terá que mostrar capacidade diplomática para ampliar as possibilidades no âmbito comercial. “Sobretudo a demanda chinesa – já em aceleração nos últimos trimestres de 2020 – pode ser o motor de um boom de commodities, podendo exercer forte estímulos sobre as exportações brasileira. A capacidade de aproveito de um possível cenário externo favorável, no entanto, dependerá da capacidade de articulação política e da política externa do governo brasileiro, que não tem demonstrado essa habilidade com relação ao nosso principal parceiro comercial.”
Além disso, a pauta das reformas tem que ser outra. Juliane Furno critica especialmente a administrativa. “O desenho da reforma administrativa parece ser só um desmonte do Estado e do funcionalismo público. O que ela prevê em aumento da arrecadação com os cortes de direitos é um valor muito baixo e hoje o Estado não tem só um problema fiscal, mas sobretudo um problema de ação. Só aumentar o dinheiro disponível nos cofres públicos não significa uma boa alocação desses recursos.”
“A prioridade teria que ser aprovar um conjunto de reformas, mas não estas que aprofundam a desigualdade e a retirada de direitos, que reduzem o poder de compra do trabalhador. No curto prazo, o Estado tem que levar adiante o gasto público, mesmo o gasto deficitário, de endividamento, porque ele tem o poder multiplicador fiscal substantivo. Ou seja, o gasto do governo no curto prazo se reverte em maior crescimento do PIB, logo, implica em uma redução da dívida pública no médio e longo prazo. Neste momento é importante salvar vidas, retomar o auxílio emergencial, garantir que as pessoas possam cumprir ainda o mínimo de isolamento possível para conter a propagação do vírus.”
Para a economista, há outras reestruturações que precisariam ser discutidas e seriam essenciais para o país voltar a ter um crescimento sustentável e que não aprofunde a desigualdade, junto com uma necessária flexibilização do Teto de Gastos.
“Seria necessário um conjunto de reformas mais estruturais, como uma reforma urbana que modifique a forma como as pessoas se relacionam com a cidade (ou não se relacionam com a cidade…) e a reforma agrária que até hoje tem sido bastante travada e tem um potencial de fornecimento de alimentos, de rebaixar um dos custos salariais que é o custo da reprodução física via alimento. E também a reforma tributária, que reduz desigualdades sociais e abre espaço fiscal para o Estado. Um conjunto de reformas estruturais que sejam concatenadas com um plano de retomada do crescimento econômico que passa pela distribuição de renda e por uma reindustrialização brasileira no caminho dos novos setores com maior agregação de valor tecnológico.”
Fonte: Glauco Faria/RBA- José Cruz/Agência Brasil